Construir uma obra, não só publicar um livro
entrevista: Fabiane Guimarães, autora de “Como se fosse um monstro” e “Apague a luz se for chorar”
Se lembra quando e por que decidiu escrever o primeiro livro? O que te fez seguir escrevendo?
Acho que eu quis escrever um livro desde o primeiro que eu li. Acho um grande mistério as pessoas que são leitoras, mas não sentem vontade de escrever. Para mim, uma coisa sempre esteve conectada à outra, como uma espécie de simbiose, em que as duas se alimentam. Ainda na infância comecei a rascunhar minhas histórias e nunca mais parei. Costumo brincar que o meu cérebro foi moldado pela ficção, é assim que assimilo o mundo, enxergo a vida pelas metáforas, vejo as pessoas como personagens. É minha maldição. Não é uma escolha, eu sigo escrevendo porque isso me deixa em paz, porque me ajuda a processar a experiência de estar aqui no mundo e interpretar a realidade.
Em relação ao processo e também ao mercado literário, quais foram as suas dificuldades ao começar e quais são elas agora?
Acho que a minha dificuldade foi a mesma de todo mundo que está começando: ter acesso e oportunidades de publicação. Sempre fui uma escritora prolífica, escrevi muitos romances ou embriões de romances, mas por muito tempo nenhum trabalho meu ia para frente. Fui rejeitada por quase todas as editoras do país (inclusive a minha editora atual). Acho que o aprendizado mais valioso que eu tirei disso tudo foi ter paciência e focar em melhorar meu trabalho, em fortalecer minha identidade enquanto escritora, além de ganhar mais confiança. Quando conectei esses três pontos, recebi a chance que tanto esperava.
Agora, que já tenho dois livros publicados, a dificuldade é chegar nas pessoas, conseguir que elas leiam meus romances. Não é porque você publicou um livro — seja de forma independente ou em uma grande casa editorial — que automaticamente vai ter leitores, que os suplementos literários vão prestar atenção em você, que vão fazer resenhas do seu livro. Se você não tem contatos importantes, é preciso ralar muito para conseguir essa atenção, e às vezes ela só vem com o tempo. Meu primeiro livro, Apague a luz se for chorar, circula muito mais hoje em dia do que quando foi lançado. E, mesmo assim, ainda tem muita gente que não conhece o meu trabalho, então é uma dificuldade grande para mim essa parte de divulgação.
Poderia dividir o seu processo de escrita?
Gosto muito de escrever de manhã, é o período em que me sinto melhor. O meu processo, no entanto, não poderia ser mais caótico. Não gosto de planejar uma história capítulo a capítulo. Geralmente, começo com uma ideia, estabeleço um começo e uma ideia de fim. O meio vou descobrindo pelo caminho.
Qual é a parte mais prazerosa do processo?
Justamente o meio. Quando você ainda não sabe o que está fazendo e vê aquilo ali tomando forma enquanto escreve. É uma sensação mágica, quase transcendental, parece até uma forma de oração. Às vezes você só entende o pensamento depois que ele já está escrito, só conhece um personagem quando coloca no papel, e às vezes a gente consegue até expressar uma ideia que antes era só um borrão. É algo que me emociona muito, que me causa euforia.
Você está sempre escrevendo ou há pausas entre um trabalho e outro?
Sempre estou escrevendo, até quando não estou escrevendo, porque eu penso muito nas minhas histórias e naquilo que ainda quero fazer.
Qual costuma ser o ponto de partida para a escrita dos seus livros?
Depende. Eu tenho muitas ideias lendo notícias de jornais. Acho alguma coisa muito interessante e logo penso em uma história. Mas ultimamente têm aparecido por aqui ideias que surgem a partir de sensações, o que tem sido muito interessante. A sensação do remorso, de ninguém acreditar em você, ou de ser uma pessoa má e não se dar conta disso, por exemplo. São sentimentos que me interessam, para explorá-los vou criando algumas coisas.
Quando escreve, se sente influenciada pelas leituras? Costuma se voltar para livros ou autores específicos?
Com certeza. Procuro ler coisas parecidas, até como ferramenta de pesquisa mesmo. De certa forma, se a escrita reflete meus interesses, as minhas leituras também estão inseridas nisso.
Você enviou uma newsletter sobre não escrever pensando em cavar um tema. Como não cair na tentação de apelar para temas chamativos e sentimentalismo?
É uma tentação muito grande. Acho que quem faz isso é um mau ficcionista porque está pensando só na repercussão. A história sempre precisa vir primeiro que o tema, até porque nunca sabemos o que vai ser da sociedade. A grande graça da ficção, inclusive, é antecipar algumas coisas. É óbvio que, como um ser político e ativo no mundo, o ficcionista reflete tudo aquilo que está ao seu redor e seus incômodos com a realidade social vão se refletir no trabalho. Mas escrever sobre uma coisa que não é particular, que não é individual, só porque acha que aquilo é relevante, é uma receita para o fracasso. Eu diria: escreva sobre suas obsessões. Nada é mais importante, na sua arte, do que aquilo que comove e perturba o artista.
Como escritora, o que busca ao ler?
Gosto muito de livros envolventes, melancólicos, que me façam pensar, que me tragam ideias ou sentimentos que nunca antes me ocorreram. Não sou muito fã de livros que são apenas exercícios estéticos ou que cavem importância social, como eu disse acima. Adoro autores que fazem o que bem entendem e que expressam suas ideias, por mais loucas que sejam.
Para escrever ficção: o que é fundamental, o que é subestimado e o que é superestimado?
Fundamental é ler muito, ler de tudo e, sobretudo, ler aquilo que você quer fazer. Ter um olhar atento aos detalhes, evitar lugares comuns, buscar inspiração naquilo que te motiva, que te deixa obcecada. Subestimado é saber fazer o bom feijão com arroz. Às vezes, tenho a impressão de que as pessoas já querem pular para o próximo nível, criar um grande romance inovador, sem aprender a fazer o básico. E com básico eu me refiro, por exemplo, a seguir uma estrutura, conectar ideias, manter o mesmo tempo verbal em toda a narrativa, construir personagens e situações verossímeis, conseguir prender o leitor. A experiência com a escrita é muito importante, a familiaridade com o negócio a gente só pega escrevendo, não dá para pular etapas. Superestimado é a prosa poética e rebuscada. Sou uma grande defensora do menos é mais. Acho que existe um lugar para sentenças robustas e metáforas bonitas. Mas acho que é dificílimo fazer isso, admiro quem sabe fazer bem, e tem muita gente que força e não fica bom. Não é porque uma escrita é simples que ela tem menos força.
Qual é o seu conselho para quem quer escrever e publicar ficção?
Os meus conselhos dariam um livro, porque são muitos. O mais importante deles é ler literatura brasileira contemporânea. Se estamos falando de produzir ficção hoje, é imprescindível que a pessoa saiba o que está sendo produzido. Em segundo lugar, é urgente ter paciência, porque esse é um processo longo, que demanda tempo, e os resultados demoram horrores. Não é porque você acabou de escrever seu primeiro livro, por exemplo, que ele será publicado. Às vezes, você precisa escrever vários livros. Também recomendo praticar, escrever muito, escrever de tudo, principalmente coisas curtas, como contos e novelas. Se o romance é correr a maratona, um conto pode te ensinar muito sobre aprender a respirar no processo. Por último, acho que um dos conselhos mais úteis que eu posso oferecer é: tenha uma identidade. Saiba quem você é, qual é seu projeto literário, o que você quer fazer enquanto escritor. Qual é sua marca enquanto artista. Todos os autores têm isso. Se você pegar um livro do Gabriel García Márquez, da Isabel Allende, ou do Philip Roth, por exemplo, vai identificar que é um trabalho daquele autor, mesmo que o nome deles não esteja na capa. Vejo que as editoras hoje não estão muito interessadas em autores de um livro só. Não se trata de publicar um livro, mas de construir sua obra.
Como é o seu momento atual como escritora? Consegue ou pretende trabalhar apenas com o que envolve literatura ou escrita?
Estou no começo da minha carreira e acho que tenho um longo caminho a percorrer. Ainda não consigo viver da escrita ficcional, tenho vários outros trabalhos não relacionados, mas já consegui me organizar para que a literatura seja minha principal opção de carreira. Estou fazendo de tudo para que, em dez anos, essa seja minha realidade.
Por fim, poderia indicar um livro clássico e um contemporâneo?
Anna Kariênina, de Tolstói. Indico dois contemporâneos: Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves (o livro nacional mais importante do século) e Diorama, da Carol Bensimon, que é uma verdadeira aula de boa ficção e manejo de escrita.
não conhecia a Fabiane, dicas anotadíssimas!
Amei a entrevista!