Em How to read and why, Harold Bloom separa as narrativas breves em duas: as do tipo Tchekhovianas, que tratam da vida ordinária; e as Kafkianas, que apostam em elementos fantásticos para abordarem vazios.
O primeiro tipo traz contos em que a realidade torna-se extraordinária. No segundo, o real é virado do avesso e o fantástico torna-se tão ordinário que perturba, servindo como um véu para ocultar aquilo que, no subtexto, representa algo de real. Quem lê o segundo tipo de conto, eventualmente esbarrará em comentários sobre uma tradição da literatura de horror própria da América Latina, lugar marcado pelo caos e onde uma leva de escritores recorre ao fantástico para dar vazão às ansiedades e críticas, refiram-se elas à condição de pessoas ou de um lugar. São parte desse movimento Amparo Dávila e Mariana Enriquez, escritoras que trazem nos seus contos o estranho e o sobrenatural despontando no cotidiano de personagens comuns.
Em cerca de dois dias, devorei os doze contos de The Houseguest & other stories, de Amparo Dávila. A mexicana dedicou uma das histórias a Julio Cortázar, que assina na capa da edição um solitário e suficiente “extraordinário”. De fato, é o que os contos são. Com atmosfera semi-assustadora, em que paira o medo do oculto, personagens como ex-namorados; solteiras e casadas infelizes, filhas que saem e retornam ao lar; e irmãos em luto enfrentam situações que eu só consigo definir como bem esquisitas. Infelizmente o livro não foi publicado por aqui, mas eu não poderia deixar de escrever sobre ele, pois os contos me fisgaram do início ao fim. Enquanto não traduzem, quem lê em inglês ou espanhol pode mergulhar no mundo insólito de Dávila.
Em Carlos, os membros de uma família são controlados por algo que passa os dias no celeiro, mas que anda pela casa ao anoitecer. Quem também saí de quartos escuros à noite, aterrorizando a família e a faxineira, é o convidado do marido controlador de The Houseguest. Em Musique Croncréte, um dos meus contos favoritos, Marcela não dorme com medo da amante do marido, que passa a noite coaxando na janela do seu quarto — e um amigo quer convencê-la de que é só um sapo qualquer.
Os contos começam em meio ao cotidiano, em apartamentos, bairros perigosos e casarões tradicionais, mas então descambam para a esquisitice. Nunca fica claro se a fonte do horror são criaturas sobrenaturais, animais horríveis, mas normais, ou fruto das emoções extremas que as personagens vivenciam. Se os antagonistas trazem características animalescas, a maioria também poderia ser humana. E em toda vez que eu pensava estar perto de decifrar o segredo, algo me surpreendia ou escapava.
Se Dávila brinca de esconde, Enriquez deixa tudo às claras:
Fui igualmente fisgada por Os perigos de fumar na cama, da argentina Mariana Enriquez. Se Dávila flerta com o medo do desconhecido, Enriquez lança o leitor em um submundo de horrores manifestos e imagens grotescas: pais desesperados contratam um cinegrafista para provar que a filha não está sendo atormentada por uma presença maligna; um fantasma em decomposição segue sua parente pela cidade, outro espreita um hotel à espera de uma vítima vulnerável; uma menina nunca mais é a mesma depois de visitar uma bruxa com sua família; um grupo de amigas tenta encontrar desaparecidos da ditadura argentina usando uma tábua ouija.
Passando por bairros empobrecidos, pelo cemitério e por uma Barcelona que fede a morte, Enriquez não naturaliza o horror nos contos, mas o evoca como ferramenta para tratar de temores mais realistas, da violência cotidiana à histórica. Por isso, tudo é mais explícito do que em The Houseguest, desde a linguagem até as imagens.
Sou fã de horror e gosto quando os elementos do gênero acobertam a temática da história, permitindo maior sutileza. Detesto livros que contam demais, prefiro quando temas e críticas ficam no subtexto, e o autor mostra que confia no leitor. Na camada superior, gosto de histórias que entretêm e prendem, com todas as coisas estranhas e medonhas que o gênero pede. E foi isso que encontrei nos contos de Enriquez, uma escritora-jornalista que cria mundos macabros, onde a linha entre o que perturba paira entre o real e o sobrenatural.
Costumo passar " El huésped" da Amparo Dávila para meus alunos de espanhol. Agora estou com vontade de ler outros dela!
tenho muita vontade de ler esses livros, estou embarcando agora em contos assim com "pássaros na boca e sete casas vazias" e quando terminar pegarei algum desses pra ler também 🤭