Ao mesmo tempo, existimos dentro e fora de nós mesmos. Existimos como de fato somos, como pensamos que somos e como agimos no mundo, moldados pelo o que envolve existir em determinadas circunstâncias. Desse modo, existimos também na mente de cada uma das pessoas que nos conhecem e no coletivo. “Mrs. Dalloway”, para mim, é um livro sobre todas as formas de existir.
“Mrs. Dalloway” foi um dos meus primeiros clássicos e naquela vez eu não devo ter entendido 10% dele. Com a bagagem de leitora quase vazia, li meramente pelo enredo o livro que agora entendo como muito mais.
Ao tirar um livro da estante, entra em jogo também a minha subjetividade, o quanto eu posso colocar em cada leitura. Além do retorno às obras, reler é confrontar a minha própria mudança. Hoje penso que Virginia Woolf me deu uma espécie de acesso aos bastidores do funcionamento da existência. O que me encantou na releitura foi encontrar traduzido em palavras aquilo que ocorre incessante, despercebido, incompreensível, fornecendo substância para a vida.
O livro transcorre em um único dia de junho de 1923, dentro do fluxo de consciência de Clarissa, que dará uma festa naquela noite, e de Septimus, um veterano à beira do colapso no pós-guerra. Seus fluxos se entrelaçam com vários outros, no vai e vem entre pessoas, eventos, ações e pensamentos, com as horas marcadas pelo Big Ben.
Um acontecimento ordinário abre o livro: “Mrs. Dalloway disse que ela mesma iria comprar as flores. Afinal, Lucy tinha muito que fazer.” Não há nada de grandioso no pensamento que coloca Clarissa Dalloway em movimento pelas ruas de Londres, como não há em suas andanças ou em qualquer uma de suas ações ao longo do livro, pois grande parte da vida é mesmo feita de pequenezas e banalidades.
“Mrs. Dalloway” reproduz o modo como a vida é vivida: sobretudo dentro da mente. Tanto o ordinário quanto o disruptivo passam pelo pensamento antes de tornarem-se algo, grande ou pequeno, de acordo com cada pessoa. No mesmo momento e lugar, a vida é oposta para os protagonistas de “Mrs. Dalloway”. O cotidiano de Clarissa, uma mulher de cinquenta e poucos anos, um tanto incerta sobre a vida que escolheu, parece banal. Para Septimus, que lida com o estresse pós-traumático da 1ª Guerra, o dia a dia é feito de horror.
Através do fluxo de consciência, os protagonistas se materializam. Ações, comentários e pensamentos colaboram com a composição, que assim como ocorre na vida, é dividida em duas: como se pensam e como são pensados por outros.
Há, ainda, outro modo de existir: no presente e no passado. “Mrs. Dalloway” mostra como vida nos atropela veloz e então nos vemos subitamente mais velhos, sendo que nos pensávamos como jovens há instantes. Suas personagens ainda lembram-se de tudo. Não terminaram de processar o passado, então remoem-o. Reconhecem que não há mais tempo. Ou que há tempo e a vida pode mudar. O mundo interior é caótico e contraditório como o exterior.
Em “Mrs. Dalloway” não há exatidão. Tudo é tecido por fios de pensamento, pois todas as coisas existem primeiro e somente por dentro. “Nada existe fora de nós”, pensa uma personagem. É claro que há o mundo pulsando com acontecimentos e vivências de tamanhos variados, mas essa externalidade só existirá depois de ser processada internamente.
É por isso que somos capazes de andar por quilômetros sem nada perceber ou de nos sentarmos na frente de alguém que fala durante horas sem guardar uma só palavra. Perdemos-nos em devaneios sobre o passado recente e o distante, sobre a nossa importância e desimportância na imensidão do mundo. Quase não notamos o que acontece ao redor, até que a batida do relógio, o barulho de um carro ou o toque de uma mão nos traz de volta para o exterior, onde a vida segue pulsando a partir da soma de infinitas imaterialidades que jorram aqui e ali.
Lindo texto sobre um livro também tão bonito!
Adorei "reler é confrontar a minha própria mudança" <3
Ainda não li esse livro, mas está na minha lista! E seu texto me despertou a urgência de lê-lo.
Ando refletindo muito sobre essa vida 'cotidiana' e 'banal', que é a maior parte do nosso tempo e como ele escorre, sem nos darmos conta.
Lindo texto! ✨