"Em outubro, havia árvores amarelas. Então os relógios recuaram uma hora e os longos ventos de novembro chegaram e sopraram, desnudando as árvores. Na cidade de New Ross, chaminés expeliam uma fumaça que ia se dissolvendo e se espalhando em fiapos peludos e compridos antes de se dispersar ao longo dos embarcadouros, e logo o rio Barrow, escuro feito cerveja preta, engrossou com a chuva. As pessoas, em sua maioria, suportavam o tempo com tristeza […]"1
Pequenas coisas como estas, de Claire Keegan, acompanha alguns dias na vida Bill Furlong, um comerciante de carvão da cidade de New Ross, na Irlanda. O ano é 1985 e o local passa por recessão e frio severos. Na época do Natal, Bill e sua família têm a sorte de estarem entre os poucos não tão afetados. Os produtos dele aquecem a cidade no inverno, e para quem não pode mais pagar pelo carvão, Bill deixa lenha. É um de seus vários pequenos atos de gentileza.
Entre os principais clientes de Bill está o convento, que encara a cidade do alto da colina através do rio e é cercado por imensas árvores onde os corvos se empoleiram. Ao fazer uma entrega de carvão, ele presencia situações obscuras em meio aos rumores sobre as lavanderias de Madalena, locais administrados pela Igreja Católica junto com governo irlandês, que encarceraram milhares de meninas e mães solteiras — separadas dos seus bebês e forçadas a trabalhar em condições horríveis2.
Bill tenta esquecer o que presenciou, pois como diz sua esposa, Eileen: para subir na vida, é preciso ignorar certas coisas. Ir contra a Igreja, instituição poderosa na Irlanda, trará problemas para a família e, em meio à recessão, Bill sabe que “seria a coisa mais fácil do mundo perder tudo”. Pai de cinco filhas, ele é um homem devoto e cercado por mulheres. Ele próprio filho ilegítimo, entende que sua mãe poderia ter acabado em uma das instituições, e que a vida de ambos teria sido muito diferente. Em sua essência, Bill é um homem bom e enfrenta um dilema moral: se arriscar para agir de acordo com sua consciência ou adotar a conivência que domina a cidade. Como a esposa, ele tenta ser prático, seguindo em frente impelido pelo trabalho e pelo dever, mas pequenos pensamentos se infiltram na mecânica dos dias.
As cenas no convento são tristes e pioram com a nota ao final do texto, sobre os fatos reais das lavanderias de Madalena. Mas o que me comoveu foi acompanhar Bill tentando ceder à força da rotina, ao peso do dever e determinado a seguir em frente, enquanto a sua mente se volta continuamente às coisas não práticas, aos grandes e pequenos dilemas, acentuados pelo seu momento de vida e pela crise financeira.
“Será que as coisas nunca mudariam ou se transformariam em algo diferente ou novo? Ultimamente, ele começara a se perguntar o que importava, além de Eileen e as meninas. Estava perto dos 40, mas não se sentia chegando a lugar nenhum ou fazendo qualquer tipo de progresso, e às vezes não tinha como deixar de se perguntar para que serviam os dias.”
São coisas assim que compõem grande parte da vida e do caráter de uma pessoa: o equilíbrio entre se importar e se preservar; entre seguir em frente e parar; entre viver o presente, o passado e o que poderia ter sido; entre tomar as rédeas da vida e aceitar estar à mercê do acaso; entre fazer o que se deseja e o que é preciso.
A escrita de Keegan é bonita e certeira. Com economia narrativa e de palavras, ela cria imagens belíssimas, instiga sutilmente interpretações sobre tantos assuntos e transmite sentimentos, sensações e uma atmosfera que mistura tristeza e esperança. O livro é a prova de que pequenas coisas podem ser imensas. No mesmo ano em que li os calhamaços Guerra e Paz e Os miseráveis, este romance conciso de 122 páginas foi o que mais mexeu comigo e o único que fez a minha garganta amarrar.
Comecei e terminei Pequenas coisas como estas em uma noite, no começo do mês, e ainda volto ao livro. Sei que passarei muito tempo pensando em Bill Furlong e na atmosfera ao mesmo tempo soturna e acolhedora do Natal frio e cercado por corvos.
Eu não teria me interessado pelo livro, que foi uma das melhores leituras do ano, se não tivesse lido esse texto da
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Gostei demais desse livro e já estou com outro da autora na fila kkk
Coloquei na lista, o assunto me interessa muito! Recomendo a série "The Woman in the Wall" (com a Ruth Wilson) que aborda as lavanderias de Madalenas e a busca de algumas mães pelos filhos "perdidos".