Dificilmente há fã de literatura russa que não tenha topado com o nome de Irineu Franco Perpetuo. Tradutor de livros como Anna Kariênina (ed. 34), Memórias do subsolo (ed. Todavia), O mestre e margarida (ed. 34), e Vida e destino (ed. Alfaguara), ele é também autor de Como ler os russos, um guia de literatura russa para brasileiros, feito por um brasileiro.
Como ler os russos é como um curso de literatura que possibilita pensar a nossa relação com os russos e fornece um caminho guiado pelas obras. Terminei a leitura não apenas com uma grande lista de livros para ler, mas também com vontade de conhecer o autor, cuja sapiência sobre os russos impressiona.
O interesse de Perpetuo pelos russos surgiu aos 14 anos. “Na Rússia o autor mais importante é Púchkin, mas fora dela o mais conhecido é Dostoiévski. Para mim, como para muita gente, essa foi a porta de entrada.” Logo após a leitura de Os irmãos Karamázov, ele se matriculou para aprender o idioma. “Não é idade para ler um livro desse. Quando voltei a ele, muito tempo depois e na maturidade, realmente li o livro, mas alguma impressão [a primeira leitura] deixou.”
Jornalista, nunca planejou trabalhar com literatura, mas acabou atraído para ela. Fez para si próprio uma tradução do texto de Púchkin chamado Mozart e Salieri e, em uma mesa de bar, contou a história sobre o russo ter sido o criador do mito de Salieri1. Acabou contratado para traduzir três peças do poeta. “Essas Pequenas tragédias, de Púchkin, acabaram marcando a minha estreia na literatura russa.”
Isso foi em 2006. Mais de uma década depois, em 2019, escreveu o seu Como ler os russos, projeto encomendado pela Todavia. Durante o processo de pesquisa, que levou um ano, leu apenas russos ou sobre eles. A redação aconteceu durante o mês que Perpetuo passou na Rússia em uma viagem pessoal. “Fiquei durante o tempo que antecedeu a viagem fazendo a pesquisa, ou seja, anotando leituras. Organizei tudo no computador de modo que chegasse na Rússia e só precisasse montar o quebra-cabeça.”
Com o trabalho de tradução, o processo vai além do texto para propor um diálogo entre culturas, o que exige não apenas grande conhecimento da cultura de chegada, mas também da qual se está traduzindo. Pelo trabalho com Vida e destino (Vassili Grossman), Perpetuo ficou em 2º lugar no Jabuti em 2015.
A adoração da literatura russa pelos brasileiros é de longa data e começa devido a sua difusão pela Europa quando o Brasil era culturalmente influenciado pela França. A primeira onda de literatura eslava chega ao Brasil entre 1930 e 1935, com 63 livros. A segunda, entre 1943 e 1945, com 83 livros russos lançados no país.
Para Perpetuo, o fascínio dos brasileiros por essa literatura é um espanto, até para os russos, e “surpreende devido a pequena presença de descendentes ou imigrantes na nossa população”. E por que lemos tanto os russos? Além da qualidade das suas obras, reconhecidas e valorizadas mundialmente, “esses países periféricos, grandes e muito tempo submetidos ao trabalho servil talvez tenham mais semelhanças na sua formação do que estaria explícito à primeira vista, portanto as elaborações estéticas que os russos fazem têm ressonância aqui”.
A literatura é para a Rússia o que é a música popular para o Brasil, ou seja, é a esfera da cultura em que o país mais se reconhece e que talvez mais tenha atraído e recrutado grandes talentos. Isso também tem ligação com a qualidade intrínseca da literatura russa.
Na história russa, o escritor nunca foi visto apenas como um escritor. A literatura ocupou o papel de discutir temas proibidos e buscar a verdade. Tida como perigosa, foi submetida à censura. “A literatura russa é excepcional apesar da censura, mas nas estratégias criadas para driblar a censura ao longo dos séculos também está sua grandeza. Como é uma censura prolongada, faz parte do cânone literário russo. Há uma tradição. O autor censurado pode olhar para gerações anteriores e ver o que foi feito, sendo possível construir um conhecimento em cima disso.”
Aos que ainda não começaram a explorar os russos, o autor indica iniciar pelos famosos e gigantes Tolstói e Dostoiévski “para ver se o bicho [da literatura russa] pega.” E para quem já os conhece e quer seguir em um caminho de imersão, ele conta que a literatura russa se alimenta de si mesma, com autores que sempre se referem uns aos outros e indica “seguir o caminho dessas citações”, que já abrirão inúmeras portas para o aprofundamento.
Há também Como ler os russos, que fornece um caminho para entender e conhecer o cânone da literatura russa sob a orientação de ninguém menos que Perpetuo. Da leitura, fiz uma breve seleção de obras para ler além de Tolstói e Dostoiévski:
Evguiêni Oniéguin (Púchkin)
Almas Mortas (Gógol)
O capote e outras histórias (Gógol)
Pais e filhos (Turguêniev)
Diário de um homem supérfluo (Turguêniev)
Memórias de um caçador (Turguêniev)
Oblómov (Gontcharóv)
A dama do cachorrinho (Tchekhov)
A ilha de Sacalina (Tchekhov)
Vida e destino (Grossman)
Doutor Jivago (Pasternak)
Arquipélago Gulag (Soljenítsyn)
Era uma vez uma mulher que tentou matar o bebê da vizinha (Liudmila Petruchévskaia)
Meninas (Liudmila Ulítskaia)
O fim do homem soviético (Svetlana Aleksiévitch)
Vozes de Tchernóbil (Svetlana Aleksiévitch)
A entrevista, em áudio, foi editada para maior clareza.
Além de traduzir, Irineu Franco Perpetuo dá cursos sobre literatura russa. Você pode acompanhar o trabalho dele através do Instagram.
Links interessantes:
Aula aberta sobre vida e obra de Tolstói
Aula aberta sobre Dostoiévski
O mito conta que um Antonio Salieri invejoso teria envenenado Wolfgang Amadeus Mozart. Na peça Mozart e Salieri, Púchkin escreveu sobre a lendária rivalidade entre os músicos.
Que delícia de edição! E não sabia que Irineu é jornalista ;)