Edição 28: inventário austeniano
razões para ler, reler e se encantar com Jane Austen
Jane Austen é a escritora que mais me interessa e a minha maior obsessão literária, o que pode ser frustrante dada a escassez de conhecimentos concretos sobre ela. Cassandra Austen queimou a maioria das cartas da irmã, mantendo as mais inofensivas e permitindo apenas um vislumbre de Austen. Mas se a sua vida pessoal permanece um mistério, as suas obras e algum conhecimento sobre as condições em que ela escreveu bastam para o encanto duradouro. Austen pegou o limitado universo composto por bailes no pequeno vilarejo, visitas aos parentes, questões financeiras, matrimoniais e cotidianas, e transformou-o em arte. Com enredos quase banais, os romances austenianos sobrevivem à sua época por serem muito mais do que parecem.
Razão e sensibilidade acompanha as irmãs Dashwood, lançadas à pobreza pelo meio-irmão. Orgulho e preconceito gira em torno dos arranjos da sra. Bennet para casar bem as filhas, evitando que elas sofram o destino das Dashwood. Mansfield Park é voltado à Fanny, criada por tios ricos em posição de inferioridade e sem perspectivas além da submissão. Emma é a deliciosa história de uma protagonista rica, mimada e que, não precisando preocupar-se com o próprio casamento, se dá o papel de casamenteira do vilarejo. A abadia de Northanger brinca com o fazer literário para mostrar uma jovem sendo introduzida à sociedade e tentando compreender o mundo a partir da limitada experiência devorando romances góticos. Persuasão traz Anne vivendo o outono de sua vida após ser persuadida a recusar o homem que amava.
Virginia Woolf escreveu que Austen equilibrou os seus dons com perfeição e “entre os romances que concluiu, não há fracassos, e entre os muitos capítulos de cada um, poucos ficam notadamente abaixo do nível dos demais.”1
Esta edição é um inventário do que me faz ler, reler e adorar Jane Austen.
Há ao menos duas experiências: lendo pela primeira camada de puro prazer, passando o tempo e divertindo-se com as intrigas, o drama e os casais; ou com mais calma e atenção, explorando os padrões e detalhes na composição, pois tudo indica que Austen revisava intensamente os manuscritos, preocupando-se com as técnicas e o emaranhado de motivações e movimentações de personagens, tornando a sua obra tão convidativa às releituras.
As cartas de Austen sugerem que ela levava tudo com humor e o riso austeniano é o que torna os seus romances divertidos, mas também fornece a eles camadas de ironia, sátira e não ditos. Toda frase é explorável, principalmente o que está em discurso indireto livre, técnica que Austen usou com maestria e pioneirismo.
Engana-se quem pensa que ela escreveu somente histórias românticas. O amor e o casamento compõem a primeira camada, que organiza os enredos, mas há outras que tratam de temas comuns ao comportamento das pessoas em segredo e em sociedade, e como ambos se mesclam quando a sociabilidade mascara as intenções. Nas conversas sobre o que acontece para além do centro romântico, há pistas e detalhes sobre como as pessoas viviam e o que acontecia na época.
Austen inovou ao unir os enredos cativantes às personagens bem construídas. Em seus livros, não há uma personagem como a outra. Todas são vívidas, têm vozes definidas e passam por transformação, no próprio arco ou ao olhos do leitor. Mesmo as caricatas são mais complexas do que parecem à primeira vista. Não há vilania ou maquinação como um fim em si, mas como um jogo social de questões intrincadas. Parte importante dos romances está em como personagens interpretam, quase sempre equivocadamente, uns aos outros.
Seus romances são o retrato de uma época, focados no cotidiano da pequena nobreza, a parte da classe média britânica possuidora de terras, mas não necessariamente de fortuna, em que a única possibilidade de ascensão para a mulher, dependendo dos acordos sobre a herança, era o casamento. Austen tinha um olhar afiado e muito consciente para a sociedade, os costumes e as próprias limitações, mas inseriu as observações e críticas sem o rancor que minaria a diversão dos livros, preferindo fazê-lo com humor e leveza.
A obra de Austen merece ser lida por inteiro, pois há um romance para cada gosto, aspectos da escrita e da história para serem apreciados em cada livro. Perfeito para o primeiro contato pode ser Orgulho e preconceito, mas também acho bacana a experiência de lê-la em ordem cronológica, notando a evolução e encontrando os seus romances austenianos favoritos. De qualquer modo, Jane Austen só melhora — a cada romance e a cada releitura.
Vamos ler Jane Austen no primeiro projeto da newsletter? Começaremos no domingo, 23 de junho, com Razão e sensibilidade. As informações estão aqui.
Jane Austen entrou na lista de leituras esse ano, depois de uma vida inteira com um certo preconceito com literatura inglesa daquela época, que poderia ser muito caricata e cheia de por-favor-e-obrigado e salões de chá. Ali Smith, Virginia Woolf e uma amiga de confiança me convenceram que é bem mais que isso e talvez seja até uma vantagem eu não simpatizar com os costumes ingleses. Vou começar por Persuasão. Dei uma olhada nas primeiras páginas e a forma me surpreendeu. A Abadia de Northanger também me deixa curioso, parece bastante moderno.
Vivo dando chances a ela mas não sei … enrosca … vamos lá novamente