Janeiro foi o mês de uma drástica mudança da cidade para o interior. Deixei o lugar em que morei por mais tempo, onde acreditei que me estabeleceria e no qual, pela primeira vez nos anos de aluguel, deixei que a biblioteca crescesse quase que escandalosamente. Não no caminhão, mas junto comigo, vieram as edições muito caras e livros rabiscados por inteiro. Ao lado dos raríssimos contos de Tolstói, uma Anna Kariênina destruída e de valor inestimável.
Há alguns anos, quando meus livros eram impecáveis, notei que pouco do que eu tinha lido havia ficado comigo. Uma pena. Todos aqueles livros e o tempo dedicado à leitura lançados ao vazio. Pensei em escrever sobre os próximos, mas nunca tive uma memória boa e o tempo de guardar um livro na estante bastava para o esquecimento. Fiz o que antes seria impensável e dei uma rabiscadinha no que estava lendo. Comecei tímida, sublinhando com um lápis, a mão bem leve para apagar se o arrependimento fosse grande. Voltava aos livros para olhar as marcações e podia escrever sobre essas experiências. Dos livros que ganhavam pequenos textos, eu lembrava um tanto a mais, então os sublinhados se intensificaram, brotaram notas nas margens e tornou-se impensável ler sem rabiscar.
Minha relação com o que eu leio começa com as anotações no próprio livro. O que eu marco depende do que quero tentar lembrar ou encontrar depois. Depende, também, de cada livro. Meus livros favoritos têm rabiscos novos em cima dos antigos e orelhas dobradas. Tenho manias acerca de cores e do melhor grafite, mas quando estou longe das frescuras, anoto com o que estiver à frente. Destruo os meus livros porque, sem as anotações, eu não conseguiria escrever sobre eles. E a escrita surge como extensão da experiência de leitura. Sem escrever, fica a sensação de incompletude.
Na mudança, também veio grudado em mim um diário de leituras. Nele me importa responder: o que o escritor fez com o livro e o que o livro fez comigo. Como dedico grande parte do meu tempo livre à leitura, registrar o que eu leio é, de certo modo, registrar a vida.
Esses são os meus porquês e aqui está o como:
O nível de complexidade das anotações depende do livro: posso fazer um código de cores para rastrear coisas específicas, para separar o que é importante para mim do que parece relevante na narrativa, ou posso só marcar o que gosto sem critérios. Ao reler, defino temas e/ou padrões para notar desde o início, mas na primeira leitura só acompanho o que chamar a atenção depois algumas páginas ou capítulos. Busco destacar no texto evidências de: temas e padrões; construção de personagem e da atmosfera; contexto histórico; decisões envolvendo a estrutura e o narrador; efeitos causados por estilo e técnica; papel do espaço e do tempo. No diário, vão as anotações sobre o que eu senti durante a leitura; do que eu gostei e do que não gostei; quais eram as expectativas no início e como cheguei ao final; qualquer ideia, reflexão, conexão, entendimento ou pensamento; e qual impressão o livro deixou. Para quem não quer anotar diretamente nos livros, ler com um caderno ao lado é o suficiente para um contato mais próximo. É como eu leio ebooks.
Me identifique demais Júlia. Meus livros tão todos rabiscado, grifados e cheios de post it. Antes tinha dó, mas depois percebi que esse mergulho no livro é parte indissociável da experiência. E que as marcas nos livros são como as nossa cicatrizes: lembranças de que vivemos de verdade e não apenas existimos. Adorei o seu texto 🫀
eu tinha bastante pena de riscar os livros. muita pena mesmo. mas virei arqueóloga e comecei a ver como os objetos falam sobre as pessoas e pensei que meus livros não diriam muito sobre mim. acho uma preciosidade esses livros marcados!