demorar-se no que importa
edição 39: leitura lenta e passeios por um livro
Em maio, quase perdi minha gata. Fiquei impaciente com a internação e a espera pelo diagnóstico e então com a cirurgia, a recuperação e a alta. Com a volta para casa, a ansiedade ficou por conta do prognóstico e de vê-la melhorar. Ao mesmo tempo, a impaciência para voltar à rotina. Queria sobretudo recuperar o foco e o ritmo de leitura, exterminados pela preocupação. Me permiti passar semanas com o celular colado no corpo, esperando notícias, mas também tentando me distrair. Quando não precisei mais dessa postura, foi difícil abandoná-la. Não conseguia ler sem me interromper. Era como se eu jamais tivesse terminado um livro. Me frustrava não estar dando vazão às leituras e ter que abrir mão do que eu queria para o ano. Mas, em paralelo, a situação com a Helga foi me mostrando que nada disso importava tanto e que, na vida e nas leituras, eu precisava treinar a paciência.
Precisei reaprender coisas que eu sabia, mas que nesta era da impaciência são facilmente esquecidas: a capacidade de sentar e permanecer com um livro sem distrações e por tempo suficiente; a insistência em leituras que demoram mais que o esperado, sabendo que valerá a pena seguir em frente; que a melhor leitura possível de um livro é mais valiosa do que a leitura apressada de vários; e que a paciência é necessária ao longo da vida literária e também de cada leitura.
“Se algo importante ou absorvente está ocorrendo, temos de cultivar a arte da demora.”
Em Seis passeios pelos bosques da ficção1, Umberto Eco escreve que “um bosque é um jardim de caminhos que se bifurcam”. Mesmo que não existam trilhas definidas, cada um poderá traçar o seu caminho, como ocorre na literatura. Para Eco, há duas maneiras de percorrer um texto: para saber o fim da história ou para descobrir como a voz narrativa guia a leitura e o que ela espera de seus leitores.
O segundo caminho pede releituras e paciência. Eco escreve que “o leitor é obrigado a optar o tempo todo” e faz suas escolhas no bosque da narrativa acreditando que algumas delas serão mais razoáveis que outras. Engajar com um livro envolve fazer perguntas e, mesmo que inconscientemente, previsões. Cada fala, evento ou frase pode motivar uma pergunta sobre o que acontecerá, no que pode-se confiar ou sobre significados possíveis. Se esse modo de ler é mais lento, ele também recompensa ao permitir maior conexão com o livro:
“O processo de fazer previsões constitui um aspecto emocional necessário da leitura que coloca em jogo esperanças e medos, bem como a tensão resultante de nossa identificação com o destino das personagens.”
Talvez a leitura mais meticulosa pareça um sacrifício ao prazer de ler, mas foi com ela que eu finalmente recuperei o ritmo. Em vez de acelerar para ler o que eu pretendia no ano, ou mesmo no mês, foquei em uma única leitura bem feita: Razão e sensibilidade, de Jane Austen, que me comprometi a fazer em conjunto.
Me permiti deixar outras coisas de lado para ter tempo de reler capítulos inteiros, de pesquisar e refletir. Quis passear por seus caminhos sem pressa e me demorei em poucas cenas, em analisar o que mais chamou a atenção. Em algum momento, as coisas se encaixaram. Helga ficou bem e eu voltei a ser uma leitora focada, atenta e paciente. Retomei a paixão pela leitura e terminei Razão e sensibilidade encantada com o romance austeniano que costumava ser o meu menos favorito.
Demorar-se em um livro grandioso jamais será perda de tempo, pois enquanto aguardamos nas partes mais lentas do passeio, “aprendemos um bocado sobre o mundo — o que, afinal de contas, é a melhor coisa que pode nos acontecer nesta vida”. Eco refere-se à obra-prima de Dante, mas penso que isso aplica-se a qualquer livro que de fato mereça ser lido. Se for para acelerar a experiência, é melhor não lê-lo. As coisas que importam têm seu próprio tempo e pedem paciência, mesmo em tempos apressados como estes.
Tenho lindo mais lentamente, sinto que estou me conectando com o prazer da leitura. Obrigada, você é uma inspiração.
ultimamente, não tenho conseguido ler quase nada… mas gosto dessa leitura mais lenta, saboreando o texto…