“E que tipo de loucura é essa, amar algo constitucionalmente incapaz de retribuir o seu amor?”1
Estive em uma crise da escrita. Por que escolhi uma forma desamparada, lançada ao abismo de um mundo que dispara em direção ao conteúdo mais chamativo possível? Não há espaço para o texto que não seja eventualmente engolido, então por que escrever? Por que querer escrever? Mesmo no nicho literário cuja existência está intimamente ligada à escrita, o texto é um fóssil, não traz views. Escrever é arcaico.
Comecei a escrever na internet para dividir minhas leituras, mas também para preencher o vazio que ficou quando decidi que, como jornalista, não queria mais trabalhar nas redações. Por adorar literatura, quis escrever livros e fui ler muita ficção contemporânea. Depois de algum tempo fazendo isso, cansei de encontrar livros aclamados ou que abatem litros de lágrimas de leitores, mas que são rasos em construção. Passei por levas de livros, gostei de poucos e a maioria me deixou com a mesma sensação irritante: de ter lido algo escrito para provar um ponto, algo apoiado no sentimentalismo, nos temas predeterminados ou na violência absurda (geralmente direcionada à personagem feminina).
Em parte pelo cansaço com o que é ovacionado, em parte pelos vários relatos sobre a realidade precária do escritor, em parte por me entender cada vez melhor, perdi o gosto pela escrita de ficção. Tentei contornar o desânimo me forçando a escrever, mas ter que cobrar-me sobre algo que supostamente faço por mim é um claro indicativo de que eu não quero realmente continuar fazendo aquilo. Demorei para compreender (e admitir) que me desconectei da escrita de ficção. Ao mesmo tempo, fui me encontrando na não ficção.
Desde que comecei a enviar a newsletter com mais assiduidade, senti que escrever não ficção me entusiasmava muito mais e que eu deveria focar nesses textos, o que significaria abrir mão do tempo dedicado à ficção. Pensei, também, sobre a liberdade de escrever na internet, que permite a conexão direta entre escritor e leitor, sem a necessidade da aprovação de terceiros, de um mercado. A escolha é do leitor e isso me parece justo. Há mais sentido, mais propósito, em direcionar o meu esforço a um espaço que é meu e que, por sorte minha, me liga às pessoas que escolhem me ler. Nem sempre sei para quem escrevo, mas vocês estão aqui. Não há chancela mais gratificante.
Na hora certa, eu comecei um livro que amarrou tudo o que eu estava pensando e me mostrou um caminho possível. Essayism é um livro de ensaios sobre o ensaio, que é um tipo de escrita difícil de definir. O ensaísta constrói o texto através da pesquisa misturada às reflexões, sem pretender findar o seu assunto. Escrever ensaios não é trazer conclusões finais, mas traduzir o processo de investigação e construção do pensamento sobre determinado tema, que pode ser qualquer um. Ensaios transcendem o texto informativo, educativo ou jornalístico, pois mesclam a objetividade da pesquisa à subjetividade do ensaísta, que fundem-se com o que Virginia Woolf chamou de magia da escrita2. O ensaísta preocupa-se com a forma e a estética bem como um escritor de ficção. Quando penso em seguir escrevendo pelo resto da vida, nada faz meu coração bater mais forte do que essa escrita da busca e do aprendizado mesclada ao que eu mais gosto na ficção.
Escrever é fazer escolhas.
Cada texto é o resultado de infinitas escolhas, incluindo a escolha sobre o que escrever. A inevitável passagem do tempo me faz afunilar o que busco para a vida. Escolhendo a não ficção, sinto que tenho chances de eventualmente me tornar a escritora que eu quero ser. Sinto isso porque escrever para investigar e buscar, para construir o pensamento, é uma necessidade. É o que eu faria sendo ou não remunerada, sendo ou não aceita por outros. Minhas dúvidas sobre escrever ou não, publicar ou não, estar ou não online, dispersam-se frente a essa ânsia. Não tenho que me cobrar ou me forçar a fazê-lo, pois de fato, é por isso que escrevo. Para dar vazão àquilo que está intrincado a tudo que eu entendo e não entendo sobre mim mesma. Os livros e a escrita não retribuirão o meu amor, mas escrever é preciso. Escrevo porque quero continuar escrevendo. E buscando.
✦ Na próxima edição para apoiadores, escrevo sobre os planos para a carreira de escritora e meu plano de estudos para os próximos meses. A edição seguinte será sobre ler ficção para além do enredo, olhando para os outros elementos que compõem o livro. Para recebê-las, basta assinar a versão paga clicando aqui. ✦
Frase de Maggie Nelson, em “Bluets”, citada no livro “Essayism”, de Brian Dillon. Aqui, em tradução livre minha.
“The Modern Essay”, por Virginia Woolf.
Júlia <3 esta frase aqui é um resumo lindo da prática do texto: "Escrevo porque quero continuar escrevendo. E buscando.". gostei demais da edição!
bom demais acompanhar essa newsletter! tenho me interessado muito por clássicos e como é, para mim, necessário estudá-los para além da obra. essa investigação tem me instigado bastante, tanto que, agora cursando jornalismo, tenho me distanciado cada vez mais da produção para redações e me aproximado da pesquisa e ensaios também. a busca por saber mais e mais e aprofundadamente sempre foi um hobby e depois de muito pensar sobre e seguir pessoas como você, tenho me permitido começar a viver isso. então precisei vir agradecer essa edição que tanto reverberou aqui! <3